O Caçador


O Caçador

O ocaso avermelhado entre as montanhas ruminou as esperanças do caçador de meia-idade. Todos seus quarenta e dois anos foram nada além de uma espera por aquele dia que por obra divina ou meramente natural – para os aldeões descrentes nas divindades – chegava ao fim, impossibilitando qualquer chance de prosseguimento da caçada.
Rememorou o caos em sua vila. Os corpos dilacerados, membros ensanguentados, o jorro de sofrimento de pais e mães, filhos e filhas, irmãos, namorados... Toda a dor e angústia de se acostumar com a ideia de que jamais veriam os entes queridos novamente.
Arrumou a besta no ombro. Não podia desistir – pensou com seus botões. Fora-lhe requisitada uma caçada, uma caçada que por anos fora proibida, por medo de que a criatura atacasse por vingança, porém finalmente após cinquenta anos de paz estabelecida com a fera, seu sonho se realizara. Enfadou-se por tal pensamento. Toda a amargura de seus antigos amigos suplantada pelo mero desejo da aventura a qual ansiara desde menino do primeiro momento em que ouvira a estória do “Canino Sangrento”. Mordeu os lábios.
Sentou-se sobre o galho da árvore no qual passara as últimas seis horas aguardando qualquer sinal da fera. Seguira seus rastros floresta adentro, contudo subitamente estes desapareceram, sobrando nada além do odor de pelos sujos e sangue seco.
Mascou um naco de carne seca pensando qual seria sua próxima ação. Talvez devesse preparar uma armadilha nos ranchos mais abastados da vila. Sempre havia cordeiros disponíveis nestes lugares. Logo abandonou a ideia. Os donos de tais ranchos jamais assentiram abdicar de sua “segurança” atraindo a grande fera para suas terras. Pensou em dormir por uma ou duas horas antes de prosseguir. A recordação da noite em que o prefeito batera à porta em sua cabana simples lhe veio à mente:
Duas batidas roucas na madeira. O caçador abriu a porta e lá, parado, ofegando com sofreguidão estava Lionel Merlo. O suor lhe corria toda a extensão da testa. As mãos tremulantes denunciavam seu desespero, porém a origem de sua aflição era desconhecida para o caçador cuja residência era abastada do vilarejo.
“Seu sonho se realizou, bastardo! Faça o que tem de ser feito antes que seja tarde.”
Rudes palavras de um homem em desespero transformadas em uma doce canção aos ouvidos do caçador que, sem demora, se pôs no encalço da fera.
O véu negro encobriu o céu pranteando dúzias de estrelas cadentes através do negrume azul-marinho. Viktor Seron, o caçador, se cobriu com a capa de pele de urso. Protegeu a cabeça com o capuz amarronzado contra insetos oportunistas e o rosto com um lenço preso à nuca. Trançou as pernas ao redor do tronco e fez uma oração sincera à Gaia pedindo que a noite não trouxesse perigos ainda maiores do que sua caça. Recostou a têmpora sob o capuz no caule da macieira. Adormeceu.
Foi despertado em meio ao breu. Uma fina camada de chuva umedecia suas vestes amarrotadas. Amaldiçoou sua sorte ante o sumiço de quaisquer vestígios da fera, porém agradeceu à Deusa por lhe prover água fresca.
Fora-lhe ensinado a sempre procurar o “lado bom” de qualquer dificuldade para assim não se deixar abalar pela leviandade dos desafios mais complexos impostos pela vida. Uma filosofia deveras útil para um homem sem amigos ou companhia.
Desceu do galho no qual passara a noite com um salto, caindo semiajoelhado sobre a lama que começava a se formar. Tentou enxergar na escuridão, mas não conseguiu. As nuvens de chuva encobriam as estrelas e acender uma tocha ou fogueira, independente da ocasião, estava fora de cogitação. Seguiu a trilha em direção às montanhas apalpando seu caminho, ao passo que pensamentos derradeiros lhe enevoavam a mente. Não importavam suas habilidades. Se o “Canino Sangrento” surgisse um metro à sua frente, naquela noite, estaria morto antes de desamarrar a besta do ombro. Arrepiou-se ao pensar nos cadáveres na vila.
As lágrimas do céu se intensificaram. Viktor escondeu a besta sob as vestes, tentando evitar danos a suas partes móveis. A aljava repleta de dardos, presa junta a cintura, não teve a mesma sorte, ao passo que só lhe era dada a atenção devida quando seu peso associado ao da água que a preenchia se tornava grande demais a ser suportado.
O caçador sabia que as horas se passavam, mas sentia sua força ser minada pela chuva incessante. Lamentou não ter permanecido na macieira. Em meio à chuva e trevas não teria como encontrá-la e ainda que soubesse o caminho, as horas a fio que passara vagando teriam sido suficientes para fatigar os músculos de homens muito mais jovens.
Recostou-se no primeiro local seco que encontrou. Uma gruta áspera no lado sul da montanha, grande o suficiente para abrigá-lo encolhido. Apoiou a besta no solo por entre os joelhos e descansou o queixo sobre a coronha. Com sorte, a manhã traria bons agouros e, com estes, sua caça.
O primeiro raio solar surgiu límpido em meio ao céu sem nuvens. Viktor não o notara ao abrir os olhos. Seu corpo se acostumara a acordar sempre no mesmo horário, independentemente do estado mental ou físico em que se encontrasse, de modo que sua atenção se voltou ao céu momentos depois de se dar conta de que passara a noite às margens de um lago intermitente.
Fez uma breve oração a Gaia, – Deusa da Natureza e da Terra – e a única Deusa que detinha sua devoção, agradecendo por não tê-lo permitido se afogar no lago que surgira com as chuvas da noite anterior.
Sorveu-se de longos goles d’água antes de encher o cantil de couro fervido quase até o gargalo. Fechava-o com uma rosca de cortiça quando os gritos abafados de um aldeão ecoaram através da floresta.
Armou a corda da besta e encaixou um dardo. Pôde ouvir o coração martelar-lhe o peito, acelerando a cada instante com a adrenalina fluindo em conjunto com o sangue. Inspirou profundamente e esperou o tremor das mãos passar. Repetiu a si mesmo um mantra aprendido com o ancião do vilarejo – há muito falecido – e aguardou seu controle sobre si mesmo regressar.
Um passo dado tão sorrateiramente quanto o outro. Foi assim que tangenciou a margem do lago e adentrou o emaranhado de galhos retorcidos de árvores tão velhas quanto sua própria vila. Passou a mão sobre o cinto e sorriu ao sentir a presença de sua faca. Empurrou o caule frágil de uma seringueira recém-brotada com a lateral do ombro.
Os berros do homem em aflição não cessavam, porém ao se aproximar da origem do som, Viktor se deu conta de que não importava o quanto andasse, jamais alcançaria o homem agonizante se mantivesse as passadas lentas. Teria, por uma vez, de abandonar a cautela e se aventurar no desconhecido sem a furtividade devida.
Ignorou a própria segurança e assim o fez. Percorreu os espaços estreitos entre as árvores a toda velocidade, deixando para trás um número incontável de folhas esvoaçantes, galhos partidos e tiras de pano retalhadas por ocasionais espinhos que, por vezes, lhe arranhavam a pele. Ousou prender a besta ao ombro. Armado apenas de sua faca, não apresentava grande perigo à fera cujos meros caninos detinham tamanho equiparável ao de sua cabeça, contudo o ato simbólico de tê-la em mãos o fazia se sentir seguro.
Chegou a uma breve clareira na qual, em sua extremidade oposta, o lar da criatura deveria residir. Uma caverna grotesca em meio às rochas-mãe que sustentavam a montanha, adornada por dúzias de estalactites e estalagmites. Bastou fitá-la por alguns segundos para reconhecer sua semelhança com a fera em questão.
Os gritos prosseguiam como sussurros no interior da caverna. Murmúrios de um aldeão indolente perante a mandíbula gigantesca que o devorava sem compaixão, mantendo-o vivo a cada nova mordida, para assim desfrutar de carne fresca.
Viktor sabia que, em um campo tão desfavorável, não teria como recarregar sua arma principal. Poderia esconder sob a vegetação da clareira uma dúzia de armadilhas e aguardar que o apetite voraz da criatura fizesse o trabalho de enviá-la para fora de seu covil, mas, para tanto, teria de suportar a agonia de ouvir a aflição do homem devorado se esvair em conjunto com o sangue que fluía pelo chão.
Não podia arriscar uma derrota em meio a tantas baixas. Depositou a besta sobre as grossas raízes de uma das muitas árvores e pôs-se a cortar caules de jovens arbustos com a parte serrilhada da faca.
A noite não tardou a chegar. Para o desgosto de Viktor, a chuva também não. Mal podia se lembrar do número de cipós que usara para cercar a caverna. Fizera o trabalho com a precisão impecável, escondendo estacas à frente da entrada sob a montanha, pesos-mortos distribuídos em árvores ao redor prontos a serem ativados ao mero toque de uma pata felpuda numa das armadilhas distribuídas pelo campo e também uma lança feita para si, no caso de todo o resto falhar.
De sua posição no alto de um galho, lembrava um falcão esperando pelo momento devido de simplesmente buscar a presa já abatida, mas, para sua infelicidade, o odor de cachorro molhado era insuportável. Imaginou se a chuva que caía tão vigorosamente sobre o campo tinha inundado as profundezas da caverna, até o momento em que o uivo tenebroso do Fenrir – um lobo de tamanho equiparável ao de um cavalo – ecoou poucos centímetros abaixo de seus pés.
A chuva mascarava o cheiro do caçador, de modo que o lobo colossal não notou sua presença. Pela primeira vez na vida sentindo temor real, Viktor tomou a besta nas mãos e a apontou diretamente sobre a nuca da criatura. O dardo, de madeira e metal, de um quarto de metro, feito para furar armadura a cem jardas de distância, partiria a cervical do Fenrir tal qual uma faca quente cortando manteiga.
Um novo uivo ecoou e, para o desespero do caçador, o Fenrir, pouco abaixo de si, estava em silêncio. Viktor voltou os olhos para a caverna a tempo de ver os olhos rubi-flamejantes de uma criatura ainda maior que a primeira o fitando diretamente.
Não estava certo do que deveria ser feito, mas por instinto, levou a besta ao ombro direito e a mirou no lobo de olhos vermelhos.
-Espere. – afirmou um homem de idade avançada parado onde há pouco estivera o primeiro Fenrir.
Viktor estava tão apático quanto concentrado. Não sabia se deveria ouvir ao ancião-lobo ou disparar contra nova fera que surgira.
O lobo de olhos vermelhos encarou o ancião com hostilidade visível.
-Avise aos aldeões que não fui eu quem atacou, e que vim aqui me redimir de pecados passados. – informou o ancião assumindo outra vez a forma de lobo e avançando contra o Fenrir de olhos vermelhos.
-Espere! – vociferou Viktor sem entender lhufas. O grito foi suficiente para fazer o ancião-lobo parar, mas não para evitá-lo tropeçar em um dos cipós espalhados pelo campo e ser atingido no dorso por uma tora.
O “Olhos Vermelhos” avançou pelo campo contra o ancião-lobo, mas tal como seu semelhante, teve seu avanço interrompido por uma dúzia de armadilhas. A mais devastadora tendo lhe perfurado o abdome com múltiplos espetos de madeira.
Viktor notou o aguçar de seus sentidos. Não por medo, ou pela adrenalina de abater duas feras colossais, mas pelo instinto selvagem de caça pertencente a todos os seres carnívoros. Abandonou sua posição na árvore e correu pelo descampado saltando os fios das armadilhas não ativadas.
Viu em primeira mão o uivo aterrorizante das estórias de ninar contadas por seu avô se alterar para um uivo melancólico, carregado de aflição e desesperança. Em meio à noite de lua crescente, o sangue escorreu entre as mandíbulas do “Olhos Vermelhos” enquanto aguardava seu fim. Viktor, sem hesitação, puxou o gatilho da besta.
O silêncio imperou na floresta.

Estórias não confirmadas contadas posteriormente por aldeões negam a veracidade da história de Viktor e dos Fenrir. O fato é que após aquela noite de verão, jamais houve outro ataque, para o júbilo de Lionel Merlo e dos habitantes do vilarejo. Viktor, mesmo tendo levado provas do abatimento de sua presa, foi tido como louco e permaneceu excluído dos demais até o dia em que seu sumiço foi notado.
Ninguém se abalou com seu desaparecimento até que, anos mais tarde – vulgo “dias presentes” –, a fera ressurgiu ainda mais mortal e, em sua fúria, consumiu a vila em sangue e chamas. Eu, por outro lado, sou grato a Viktor que permaneceu ao meu lado até que estivesse totalmente recuperado dos ferimentos causados pela tora que me atingiu naquela noite chuvosa. As dores permanecem até hoje, dez anos depois e, por isto, não pude acompanhá-lo nesta nova jornada. Uma certeza permanece acima das demais dúvidas. A certeza de que ele será capaz de ceifar a vida desta nova fera, afinal ele é O Caçador.

Por: Juan Vargas Rossano